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Não era o café que estava amargo. Era a minha boca. Um azedume que já nem percebia porque me acompanhava desde muito... Domingo. Silencioso. Introspecto. Como já há anos não era. Sempre muito barulho. Conversas. Panelas. Almoço no fogo. E o silêncio sucumbia. Melhor assim. Porque não ouvia meus pensamentos. Não gostava deles. Não os entendia... Os balões ainda estavam pendurados por toda a cozinha. Resquícios do dia anterior. Festa de aniversário. De gente grande, mas parecia de criança. Celebramos ontem a noite a inocência, o vigor, a vitalidade, a natalidade, a leveza das crianças que um dia não fomos. E quisemos ser. Mas, não foi possível. Tudo bem. Claudia estava completando trinta e três anos. A famosa “idade de Cristo”. Uma pessoa tão especial não podia passar o aniversario sem festa. Sem bolo. Sem balões. Sem velinhas. Não, de forma alguma. Precisávamos dar um jeito. Porque são momentos de vivências que permanecem. O amor entre nós é que vai perdurar. Porque é verdadeiro... Corremos até o mercado. Compramos quase tudo. Quase. Faltou a língua-de-sogra. Ah, não! Aniversário sem língua-de-sogra não podia. Mas, o da Claudia foi assim mesmo. Os pratinhos, os copinhos, os garfinhos todos cor-de-rosa. Ela é menininha. O chapéu era de palhaço. O bolo de chocolate. E os balões, coloridos. Enquanto um escrevia feliz aniversário improvisando com letras garrafais em folhas de sulfite coloridas o outro ficava verde de tanto encher os balões. Ah, as velinhas eram duas. Não com números da idade completada. Mas, representando a imensidão da luz que está naquele ser humano. Espalhamos balão por toda a cozinha. Fixamos o sulfite na parede. Arrumamos a mesa. Enfeitamos nossos corações para receber a amiga que estava prestes a chegar. E chegou... Quase tristonha. Pensou que não tinha motivos para celebrar. Mas, tinha. E muitos. Pelos olhos via-se seu coraçãozinho quase apertado. Lembranças. Falta delas. Ausências. Ciclo renovando-se. A vida em movimento constante, permanente. Seu namorado Robson estava junto. Também não sabia de nada. Não tivemos tempo de avisá-lo. Preparamos até uma música infantil de aniversário muito conhecida. Ela estava na porta da cozinha. Vendamos seus olhos. Os corações disparados. Dos quatro, com certeza. Soltamos a música. Tiramos a venda. E os olhinhos verdes de Claudia reluziram. Foi lindo ver. Valeu toda a correria. Como a festa era toda improvisada pedimos pizzas para jantar. Comemos. Conversamos. Todos adultos que somos. Mas, as nossas crianças interiores estavam ansiosas pelo bolo. Rodopiavam ao redor da mesa enfeitada. Esperando aqueles adultos chatos se resolverem. E nos resolvemos. Fomos ao bolo com guaraná. Com chapeuzinhos, com garfinhos, com pratinhos improvisados. Ah, e com balões coloridos. Cantamos parabéns, parabéns, hoje é o seu dia, que dia mais feliz... Ela cortou o bolo de chocolate tão aguardado. Recheado com muito chantilly e amizade. O primeiro pedaço foi para ela mesma. Os outros, para nós. De repente, alguma coisa inusitada aconteceu. A aniversariante já governada por sua travessa criança pintou os nossos narizes de bolo com chantilly. Toda avalanche começa com uma única pedra. Uma guerra de bolo na cara se deflagrou. E foi chantilly de chocolate até no pensamento. O chão branco da cozinha ficou mesclado por pegadas, pedaços de bolo e risadas. Rimos muito. A diversão declarada. As crianças que não fomos – porque a vida nos exigiu muito cedo – brincavam felizes. Sonhos foram realizados em meio a tanto bolo sendo espalhado pela casa. Sujeira crônica. E o melhor de tudo, a lembrança do amor sendo vivido. Irmãos que agora brincavam na mesma história. Depois de toda a patuscada, a casa limpa em mutirão. O calor dos momentos já tinha raízes eternas. Depois de muito a festa acabou. Todos retornaram à suas casas. Nós fomos tomar banho e dormir. Exaustos... Acordei e precisei de um café. Não, ressaca não. Em festa de criança não pode ter álcool. E não bebemos. Não precisamos. Chove. Fiz o café. Já passa das dez. Abri a porta da cozinha e observo a chuva sonolenta, tão serena que quase flutua. Feito recurso cinematográfico. Errei o café outra vez. Ficou amargo, forte. Bebi mesmo assim. Mesmo sabendo que o azedume é da minha boca. Os balões ainda estão pela casa. Ainda bem. Porque eles são a prova de que não delirei. O sentimento é bom. É quentinho. O silêncio de agora é um presente. Mesmo ouvindo os meus pensamentos. Mesmo bebendo um café amargo. Mesmo trazendo um azedume acumulado pelo tempo na boca. Sou grato. Sou feliz. E ao olhar como quem não quer nada, de canto de olho, ainda vejo as nossas crianças interiores intrépidas brincando, se divertindo com bolo recheado de chantilly de chocolate e amizade cantarolando feliz aniversário, irmãzinha do coração... Como se elas nunca tivessem experimentado esta combinação de sabores.
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