sábado, 10 de janeiro de 2015

Mulherzinha!


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Sugiro que leia o texto ouvindo a música do vídeo abaixo!




Ele colocou aquelas luvas como se fosse um maestro famoso se preparando para uma grande apresentação e, depois, aplausos. Mas eram luvas de combate. E ele era um homenzarrão de dois metros de altura. Quase cem quilos de massa corporal. Seus ouvidos  não eram refinados por notas musicais.Suas orelhas eram grossas de pancada. As da vida e as da luta. Do esporte que escolhera. Mais ou menos. Quem escolhera por ele foi seu irmão mais velho. Dizia que macho dá porrada. Dá socos e pontapés. Vai para o baile e "pega geral a mulherada".
E, inacreditavelmente, ele só queria sorrir. As pancadas não deixavam. As da vida e as da luta. E ele queria aprender a tocar violino. Chorava todas as vezes que ouvia. Que ouvia sozinho. Porque seu irmão ficava bravo se visse manifestações de emoção. De sua parte, pelo menos. Falava asperamente que aquilo era coisa de mulherzinha. Você tá parecendo uma mulherzinha! E ele não entendia por que aquilo sempre era um insulto. Qualquer manifestação de sensibilidade demonstrada era seguida imediatamente por essa frase tão penosa.
A mãe deles era mulherzinha.
A esposa do seu irmão era mulherzinha.
As três irmãs eram mulherzinhas.
A primeira sobrinha nascida há dois meses era mulherzinha. Linda. Doce, Meiga. Brilhante. Exatamente como a música do violino que ele tanto queria aprender. Como aquilo poderia ser ruim, de algum modo? 
E porque classificar tão mediocremente como "mulherzinha" somente para denegrir?
Não era a emoção da musica que degenerava ao som daquele insulto. Eram todas as mulheres que ele amava. Que o amavam também. Que lutaram, muito mais do que ele, e se  sacrificaram nesse mundo para tornar esse planeta mais humano. Mais habitável. Juntando todas as mulheres que também reproduziam esse discurso fálico centralizador. Inclusive as intelectuais, estudadas, que chegavam em casa e, na presença do marido-alfa, reduziam-se a "mulherzinha". Autodegradavam-se tão conformadas. E aceitavam. Ele não queria aceitar. Ele era um lutador. No sentido estrito da palavra. E no aspecto amplo também. Vencia brutamontes na força do braço e na destreza da técnica. Mas tinha um coração. E era sensível. E gostava de chorar diante de algo belo. Isso o  fazia pensar que estava vivo. E não se sentia menos homem por isso. Não se tornava menor ou menos viril.
Respeitava e admirava a delicadeza feminina. Sabia como tratar uma mulher sem precisar subjuga-la. Sua grandeza era na alma. No caráter. E por que isso não contava mais nos dias que se seguiam? Porque seu irmão, grosseiro e tacanho, mandava sua esposa calar a boca e ir para a cozinha? e por que ela o obedecia? Porque ela era mulherzinha! Ela aprendeu que tinha que ser assim. E ele, seu irmão estúpido e mal educado, era o macho da casa que coçava suas partes íntimas sem o menos constrangimento na frente de quem fosse.
Desde muito criança ele ouvira seu irmão falar que tinha que ser homem.
Mas, isso era uma sentença proferida da pior maneira.  E a mãe deles, inacreditavelmente, concordava e dizia o mesmo. Também tinha aprendido dessa maneira.
E ele lutou.
Não contra o que está posto na cabeça da maioria das pessoas. Não contra a sociedade impregnada em seu irmão. Mas contra si mesmo. Quando lia algum verso e ficava com vontade de ler outros do mesmo autor. Na sua mente, rapidamente, se desenhava: mulherzinha! E ele ia para a academia e treinava dobrado. E batia. E golpeava seu treinador. Lutava contra sua alma refinada quando passava por uma praça pública florida e tinha vontade de se sentar para admirar o jardim. Mulherzinha! E chegava em casa e mandava seu irmão caçula calar a boca se o incomodasse com alguma queixa. Ruidosamente, gritava "cala a boca"! Mas, não era para seu irmãozinho. Era para sua própria consciência que o cobrava a não-visita às flores da praça.
Certa vez gravou algumas músicas instrumentais de violino em seu aparelho de mp3. E corria na esteira da academia se deliciando com aquela melodia. Mas, seu coração sempre disparado com o mesmo pavor de um criminoso que será surpreendido pela polícia a qualquer momento diante do cadáver de sua vítima. Com o passar do tempo ele relaxou. Era só fones de ouvido. Não eram armas. Não estavam apontadas para seu próprio peito. Não havia risco algum. E, pela primeira vez em sua vida, ele pode simplesmente deixar seu espírito ser o que sempre quis ser: livre. Aquela música o libertava. E ele corria. O irmão certa vez perguntou vociferando porque ultimamente ele corria tanto na esteira. Ele respondeu friamente que era para ganhar agilidade e flexibilidade para lutar. E ele quase conseguia ver seu irmão mais velho derramar sangue pelos olhos. E dizia: Isso! Tem que acabar com seus adversários. Tem que machucá-los pra valer. Tem que bater muito. Não pode ser mulherzinha e dar mole. Macho que é macho não come o mel, mastiga a abelha, rapaz!  E os dias se passaram. Finalmente conseguiu encontrar a maneira de agradar seu irmão, macho, chefe de família, forte e implacável, e seu espírito, doce e sensível, que não via nenhum problema em ser assim. Mulherzinha! 

 


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