quinta-feira, 11 de julho de 2013

Transliteração





Tales precisa escrever. Voltar a escrever. Com desespero. Com urgência. Com entrega. Como fazia quando era jovem. Tales nunca foi jovem! Sempre teve aquela alma carrancuda que arrastou ao longo de sua existência. Ele já se sentiu diferente. Já permitiu sorrisos que hoje não sabe mais onde estão. Deixou-os cair pelo caminho. Abafou cada um deles naquele peito arfante sem razão alguma. Camuflou um a um em forma de versos e os chamou poesia... Ah, se todos soubessem! Todos que conheceram alguma palavra que repousou no papel depois de tê-lo reparado por dentro. Tão denso. Tão complexo. Tão diferente de si mesmo contrariando todas as filosofias existentes. Todas!
A sua audição, o seu tato, todos os sentidos permanentes em Tales sempre foram receptores que funcionaram de forma tão desconhecida. Ninguém nunca entendeu. Assusta. Machuca. Afasta sempre muita gente... Toda a gente. Não resta ninguém. Só o próprio Tales. E tudo isso já serviu, algum dia, de inspiração. Todas as sensações foram transliteradas talentosamente... Talentosamente...
Um talento que, Tales sabe, nunca fora seu. Porque já não o reconhece. Ele já não reconhece a si mesmo. Conhece sim quem está dentro soprando sorrateiramente, minuciosamente a vida que circula por suas veias de sangue já tão sem vigor. Rubor disperso. E, contudo, ele já não sabe mais escrever o que nunca escreveu. Não sabe. Acabou perdendo o que nunca havia encontrado. Perdeu-se. Esqueceu, por fim, o que nunca conseguiu aprender. E não aprendeu de verdade.
Hoje Tales precisou limpar as lentes dos seus óculos tão ultrapassados. Não conseguia enxergar. Tudo era névoa. Tudo estava sujo. Tinha que limpar. Só o lenço não resolveu. Lavou. Sabão, água, enxágüe e secagem. A sujeira ainda ficou. Permaneceu. O sabão não limpou. A água não fez daquilo passado. Tolice! Tales e suas tolices... Unicamente dele. Tolice dele. Só. Não eram as lentes que estavam embaçadas. Eram os seus olhos. E ele não conseguiu perceber. Nem isso, Tales! Não entendeu que seus olhos estiveram enevoados. Durante muito tempo. Todo o tempo. Ainda hoje estão. Ainda agora. Encobertos pelas lágrimas que não nascem. Que não brotam. Que nunca conseguiram existir. Tales não permitiu. Não consentiu. O pranto que não vem mais alimentar os seus versos. Os pensamentos desconexos. Sentimento de abandono. Abandono. Secou tudo. Secou. Até mesmo Tales. Por isso não escreve mais. Acabou o que alimentava a pena. Envelheceu. Sempre fora tão velho. Ficou ainda mais. Sempre foi. Antes, porém, escrevia. Antes fazia versos. Com desesperança. Com entrega. Com ardor. Sofreguidão. Soluços. Espasmos. Com vontade mesmo de transliterar o que era indecifrável. O papel amarelou. O vento soprou o pó estelar que pululava de seus olhos. Foi longe.
Existe ainda a ânsia. A necessidade. A dependência... Ainda há a vontade e Tales quer tanto. Precisa muito. Não dá, elas fogem. Ele caça cada uma com a fome de uma fera. Não as encontra. Não sabe mais onde andam. Onde habitam. Do que se alimentam. Onde se soletram na ciranda mais viva e terna dos poetas. Tales não dança mais nesta ciranda. Nunca dançou. Precisa delas e não mais as identifica. Elas se movimentam. Rápido demais. Ele não... Silêncio. Silencia-se. Quem é mesmo que ele está invocando? A quem chama? Quem é que lhe falta, Tales, além de ti mesmo? Ele já não se lembra...
 
 

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