Tales
precisa escrever. Voltar a escrever. Com desespero. Com urgência. Com
entrega. Como fazia quando era jovem. Tales nunca foi jovem! Sempre teve
aquela alma carrancuda que arrastou ao longo de sua existência. Ele já
se sentiu diferente. Já permitiu sorrisos que hoje não sabe mais onde
estão. Deixou-os cair pelo caminho. Abafou cada um deles naquele peito
arfante sem razão alguma. Camuflou um a um em forma de versos e os
chamou poesia... Ah, se todos soubessem! Todos que
conheceram alguma palavra que repousou no papel depois de tê-lo reparado
por dentro. Tão denso. Tão complexo. Tão diferente de si mesmo
contrariando todas as filosofias existentes. Todas!
A
sua audição, o seu tato, todos os sentidos permanentes em Tales sempre
foram receptores que funcionaram de forma tão desconhecida. Ninguém
nunca entendeu. Assusta. Machuca. Afasta sempre muita gente... Toda a
gente. Não resta ninguém. Só o próprio Tales. E tudo isso já serviu,
algum dia, de inspiração. Todas as sensações foram transliteradas
talentosamente... Talentosamente...
Um
talento que, Tales sabe, nunca fora seu. Porque já não o reconhece. Ele
já não reconhece a si mesmo. Conhece sim quem está dentro soprando
sorrateiramente, minuciosamente a vida que circula por suas veias de
sangue já tão sem vigor. Rubor disperso. E, contudo, ele já não sabe
mais escrever o que nunca escreveu. Não sabe. Acabou perdendo o que
nunca havia encontrado. Perdeu-se. Esqueceu, por fim, o que nunca
conseguiu aprender. E não aprendeu de verdade.
Hoje
Tales precisou limpar as lentes dos seus óculos tão ultrapassados. Não
conseguia enxergar. Tudo era névoa. Tudo estava sujo. Tinha que limpar.
Só o lenço não resolveu. Lavou. Sabão, água, enxágüe e secagem. A
sujeira ainda ficou. Permaneceu. O sabão não limpou. A água não fez
daquilo passado. Tolice! Tales e suas tolices... Unicamente dele. Tolice
dele. Só. Não eram as lentes que estavam embaçadas. Eram os seus olhos.
E ele não conseguiu perceber. Nem isso, Tales! Não entendeu que seus
olhos estiveram enevoados. Durante muito tempo. Todo o tempo. Ainda hoje
estão. Ainda agora. Encobertos pelas lágrimas que não nascem. Que não
brotam. Que nunca conseguiram existir. Tales não permitiu. Não
consentiu. O pranto que não vem mais alimentar os seus versos. Os
pensamentos desconexos. Sentimento de abandono. Abandono. Secou tudo.
Secou. Até mesmo Tales. Por isso não escreve mais. Acabou o que
alimentava a pena. Envelheceu. Sempre fora tão velho. Ficou ainda mais.
Sempre foi. Antes, porém, escrevia. Antes fazia versos. Com
desesperança. Com entrega. Com ardor. Sofreguidão. Soluços. Espasmos.
Com vontade mesmo de transliterar o que era indecifrável. O papel
amarelou. O vento soprou o pó estelar que pululava de seus olhos. Foi
longe.
Existe
ainda a ânsia. A necessidade. A dependência... Ainda há a vontade e
Tales quer tanto. Precisa muito. Não dá, elas fogem. Ele caça cada uma
com a fome de uma fera. Não as encontra. Não sabe mais onde andam. Onde
habitam. Do que se alimentam. Onde se soletram na ciranda mais viva e
terna dos poetas. Tales não dança mais nesta ciranda. Nunca dançou.
Precisa delas e não mais as identifica. Elas se movimentam. Rápido
demais. Ele não... Silêncio. Silencia-se. Quem é mesmo que ele está
invocando? A quem chama? Quem é que lhe falta, Tales, além de ti mesmo?
Ele já não se lembra...