Todos aqueles livros
velhos e empoeirados pareciam debochar de Lídia. Ela jamais saberia o que todos
eles sabem: o que seu marido guardava naquela biblioteca. Especificamente na
gaveta da escrivaninha. Naqueles quarenta e sete anos de casamento os livros de
Joaquim tinham sido mais amados do que ela. E isso a maltratava. Tornava vivo
um sentimento de injustiça. Ele se deitara ao seu lado noite após noite ao
longo da vida. Mas era somente seu corpo. Sua alma vagava por aquelas páginas
tão desgraçadamente bem cuidadas dos livros da biblioteca. Durante a vida toda
ela até adentrara o recinto algumas poucas vezes. Mas, nunca Joaquim permitiu
que sua esposa soubesse o que trancafiava naquela gaveta. Lídia, finalmente,
poderia chorar diante daqueles autores todos. Jogar-lhes na cara a culpa e a
responsabilidade pelo fracasso de um casamento sem amor. O nome de sua prole em
homenagem a eles, os poetas, que ela odiava... Fernando, Sophia, Mário, Alberto
e Adélia. Seus filhos tão amados. Nomes que ela não escolhera e nem tivera a
oportunidade de contestar, argumentar. Imaginava a cena: Joaquim entrando na
biblioteca e perguntando aos seus livros que nome deveria dar ao filho que
estava na maternidade. Os livros debatendo o homenageado da vez e decretando,
em tom solene, a sentença. E Lídia nada podia fazer. Suas forças minguavam. Mas
hoje, na volta do cemitério, ninguém a impediria de encarar aqueles livros
todos. Um a um. Chegara a hora do acerto de contas. E o desmascaramento da
misteriosa gaveta. Até mesmo o derrame cerebral que levara Joaquim foi
compartilhado pela biblioteca. Maldita. Se não fosse ali ele estaria em seus
braços. Ainda que sua mente vagasse... Seria dela, sua legítima esposa e mãe de
seus filhos, o último suspiro, o derradeiro momento. Um choro amargo e cortante
brotou sem censura alguma. Lídia sempre fora uma dama. Não deixaria de lado sua
excelente educação agora, justo agora. O momento era de mostrar sua
superioridade. Mas, antes chorou. Muito e francamente. Depois, com passos
firmes e leves foi até a porta. Superou sua dor de viúva mal-amada. Girou a
chave trancando-se no cômodo. Um cigarro aceso no canto da boca impregnava a
sala toda de um cheiro ruim de ódio e ressentimento perigosamente misturados. Havia
certa diversão em cada tragada da fumaça. Lídia sentou-se à escrivaninha.
Poltrona confortável. Olhou para a gaveta que estava ligeiramente aberta.
Joaquim não tivera tempo de trancá-la. A morte chegou antes e o levou sem
cerimônia ou clemência alguma. Uma mulher de vigor e sentimentos fortes agora
esmorecia diante de uma tremenda angústia. Aquela gaveta tinha sido alvo de sua
curiosidade ao longo de décadas. E se o que encontrasse ali fosse cruel demais
com ela? Perguntava-se! Será que deveria saber? Lídia decidiu que precisaria de
um trago da vodka que Joaquim bebia todas as noites na companhia daquela
biblioteca e o deixava fedendo para deitar-se com ela. Avistou a bandeja com a
garrafa do outro lado do recinto. Levantou-se decidida. Foi até a bebida.
Encheu metade do copo. Hesitou por um instante. Virou o líquido de uma única
vez. Sentiu o ar lhe faltar e sua garganta parecia agora invadida por labaredas.
Devolveu o copo na bandeja. De repente, Lídia sentiu uma pancada muito forte em
sua cabeça que a fez desmoronar no tapete. Sua visão turva ia apagando-se aos
poucos. Lentamente, perdendo os últimos instantes de sentido, Lídia avistou o
que a atingira: um livro pesado e grande. Malditos! Estavam protegendo o
segredo de Joaquim. O cigarro ainda aceso logo transformou o tapete felpudo em
fogueira. E os braços vorazes do fogo rapidamente abraçaram as estantes com
tantos livros, papel. Antes de ser sufocada pela fumaça aguda, a mente de Lídia
ainda conseguiu saborear um estranho e salgado doce de vingança. Mas, esse
também queimou. Junto com os livros, com o segredo da gaveta, com a biblioteca.
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