sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Ne Me Quitte Pas




 
“Meu mundo caiu
E me fez ficar assim
Você conseguiu
E agora diz que tem pena de mim”
Maysa


Três horas da manhã. Ausência absoluta de sono. Rebeca observa a cidade da sacada de seu quarto. Décimo segundo andar. Silêncio. Não fosse pela turbulência farfalhante que em seu peito agitava a falta de oxigênio, a noite estaria linda. O cigarro aceso queima seus dedos de unhas perfeitas sem causar a menor dor. Porque dor mesmo está em sua alma. Incenso de rosas vermelhas aceso no chão, no canto, constantemente. Na vitrola Maysa rasga sua carne viva há mais de uma hora. Lágrimas eventuais visitam os olhos de Rebeca. Atendera ao último cliente já há bastante tempo. O gosto azedo daquele homem ainda causa-lhe asco. Nojo. Repugnância. A essa altura da vida banho não consegue mais tirar essa sensação. Nem adianta mais tentar. Mas a fumaça do incenso ajudava a disfarçar aquele cheiro ferino de colônia masculina borrifada em cima do suor do trabalho do dia. Rebeca lembra-se de seu pai todas as vezes que atende sexualmente um homem. Vagabunda! A última palavra de seu pai dirigida a ela. Obviamente que não se chama Rebeca. Esqueceu. Seu nome de batismo. Não existe mais. Até em seus sonhos as pessoas se referem a ela pelo nome de guerra. Seus anseios todos foram substituídos pela necessidade de sustentar aquele pai que envelhecera às suas custas. Nas suas costas. Nunca houve afeto. Nem palavras dóceis. Nem olhares meigos. Nem sorrisos acolhedores. Somente cobrança. Insultos. Ingratidão. Incompreensão. Aquele homem, que deveria ser sua fortaleza, lembrava-a diariamente que não valia um vintém. Como se não bastasse aqueles homens todos. Fedorentos. Sovinas. Imundos. Sebosos. Subindo em seu corpo e a tratando como um pedaço de carne sem vida. Sem sentimentos. Sem gentileza alguma. Sem cerimônia qualquer. Ainda agüentava seu pai. Gritando. Cobrando. Vociferando. Esbravejando os horrores de ter uma filha puta. E incompetente. Porque se fosse boa em seu ofício fisgaria um figurão da sociedade hipócrita que a procurava em surdina. Laçaria com suas pernas finas e brancas um honrado pai de família que a queria pra fazer com ela toda a sujeira que não fazia com sua esposa por considerá-la “santa” demais. Sua falta de pudores profissionalmente elaborada não servia para cativar sequer um assalariado. Imprestável. Puta barata. Chinfrim. Rameira de esquina. Era isso que vinha de seu progenitor. O que resta? Chegar todas as noites em casa, entregar o resultado da noite para seu pai, doente e mal humorado, tomar um banho, acender um cigarro e olhar a noite. Rebeca sempre gostou da lua cheia. Imaginava que um príncipe encantado cantaria em serenata para ela lá da calçada, sob a lua cheia e o céu estrelado. Ela pularia em seus braços. Literalmente. E nunca mais olharia para trás. Para aquela vida desgraçada de puta infeliz. Mas o príncipe nunca vinha. Nunca aparecia ninguém. Só os gritos de seu pai. Mandando desligar a musica que tanto amava ouvir. Maysa. Olhos verdes iguais aos seus. Chorava em cada acorde. Em cada verso que sua cantora preferida interpretava seu coração ressuscitava. Mas nem isso seu pai permitia. Mas hoje não. Hoje é diferente. Há um sabor especial na noite. Em seu cigarro. Na música. Hoje seu pai estava em silêncio. Nunca mais a chamaria de puta barata. E uma histérica crise de riso abateu-se sobre Rebeca. Ela sentia-se livre. Olhou para a sala. Seu maldito e perturbador pai jazia na poltrona. Deselegantemente. E seu riso aumentou. Ela riu. Ao mesmo tempo em que chorava. Gargalhou. Colocou o volume do som na vitrola no máximo. E voltou para a sacada. E gargalhou. Enquanto suas lágrimas regavam seu batom gasto na pele daqueles homens todos que visitaram seu corpo. Pela primeira vez na vida Rebeca sentiu que era livre. E quis voar. Gargalhando. Subiu no parapeito. Sentiu a altura gelar seus pés. Riu desesperadamente feliz. E voou. Em direção aos braços do príncipe que jamais chegara a tempo. No dia seguinte, quem recebeu o jornal nas primeiras horas da manhã, leu em manchete principal:

PUTA BARATA MATA O PRÓPRIO PAI E SE JOGA DO 12º ANDAR.
 






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