“Meu mundo caiu
E me fez ficar assim
Você conseguiu
E agora diz que tem pena de mim”
E me fez ficar assim
Você conseguiu
E agora diz que tem pena de mim”
Maysa
Três
horas da manhã. Ausência absoluta de sono. Rebeca observa a cidade da sacada de
seu quarto. Décimo segundo andar. Silêncio. Não fosse pela turbulência
farfalhante que em seu peito agitava a falta de oxigênio, a noite estaria
linda. O cigarro aceso queima seus dedos de unhas perfeitas sem causar a menor
dor. Porque dor mesmo está em sua alma. Incenso de rosas vermelhas aceso no
chão, no canto, constantemente. Na vitrola Maysa rasga sua carne viva há mais
de uma hora. Lágrimas eventuais visitam os olhos de Rebeca. Atendera ao último
cliente já há bastante tempo. O gosto azedo daquele homem ainda causa-lhe asco.
Nojo. Repugnância. A essa altura da vida banho não consegue mais tirar essa
sensação. Nem adianta mais tentar. Mas a fumaça do incenso ajudava a disfarçar
aquele cheiro ferino de colônia masculina borrifada em cima do suor do trabalho
do dia. Rebeca lembra-se de seu pai todas as vezes que atende sexualmente um
homem. Vagabunda! A última palavra de
seu pai dirigida a ela. Obviamente que não se chama Rebeca. Esqueceu. Seu nome
de batismo. Não existe mais. Até em seus sonhos as pessoas se referem a ela
pelo nome de guerra. Seus anseios todos foram substituídos pela necessidade de sustentar
aquele pai que envelhecera às suas custas. Nas suas costas. Nunca houve afeto.
Nem palavras dóceis. Nem olhares meigos. Nem sorrisos acolhedores. Somente
cobrança. Insultos. Ingratidão. Incompreensão. Aquele homem, que deveria ser
sua fortaleza, lembrava-a diariamente que não valia um vintém. Como se não
bastasse aqueles homens todos. Fedorentos. Sovinas. Imundos. Sebosos. Subindo
em seu corpo e a tratando como um pedaço de carne sem vida. Sem sentimentos.
Sem gentileza alguma. Sem cerimônia qualquer. Ainda agüentava seu pai.
Gritando. Cobrando. Vociferando. Esbravejando os horrores de ter uma filha
puta. E incompetente. Porque se fosse boa em seu ofício fisgaria um figurão da
sociedade hipócrita que a procurava em surdina. Laçaria com suas pernas finas e
brancas um honrado pai de família que a queria pra fazer com ela toda a sujeira
que não fazia com sua esposa por considerá-la “santa” demais. Sua falta de
pudores profissionalmente elaborada não servia para cativar sequer um
assalariado. Imprestável. Puta barata. Chinfrim. Rameira de esquina. Era isso
que vinha de seu progenitor. O que resta? Chegar todas as noites em casa,
entregar o resultado da noite para seu pai, doente e mal humorado, tomar um
banho, acender um cigarro e olhar a noite. Rebeca sempre gostou da lua cheia.
Imaginava que um príncipe encantado cantaria em serenata para ela lá da
calçada, sob a lua cheia e o céu estrelado. Ela pularia em seus braços.
Literalmente. E nunca mais olharia para trás. Para aquela vida desgraçada de
puta infeliz. Mas o príncipe nunca vinha. Nunca aparecia ninguém. Só os gritos
de seu pai. Mandando desligar a musica que tanto amava ouvir. Maysa. Olhos
verdes iguais aos seus. Chorava em cada acorde. Em cada verso que sua cantora
preferida interpretava seu coração ressuscitava. Mas nem isso seu pai permitia.
Mas hoje não. Hoje é diferente. Há um sabor especial na noite. Em seu cigarro.
Na música. Hoje seu pai estava em silêncio. Nunca mais a chamaria de puta
barata. E uma histérica crise de riso abateu-se sobre Rebeca. Ela sentia-se
livre. Olhou para a sala. Seu maldito e perturbador pai jazia na poltrona.
Deselegantemente. E seu riso aumentou. Ela riu. Ao mesmo tempo em que chorava. Gargalhou.
Colocou o volume do som na vitrola no máximo. E voltou para a sacada. E
gargalhou. Enquanto suas lágrimas regavam seu batom gasto na pele daqueles
homens todos que visitaram seu corpo. Pela primeira vez na vida Rebeca sentiu
que era livre. E quis voar. Gargalhando. Subiu no parapeito. Sentiu a altura
gelar seus pés. Riu desesperadamente feliz. E voou. Em direção aos braços do
príncipe que jamais chegara a tempo. No dia seguinte, quem recebeu o jornal nas
primeiras horas da manhã, leu em manchete principal:
PUTA BARATA MATA
O PRÓPRIO PAI E SE JOGA DO 12º ANDAR.
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